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A Justiça do Trabalho paralisada

1 jul 2020 | Categoria Geral | Enviado por | 0 Comentários

No 27 de junho de 2020, o Ministro Gilmar Mendes, nos autos da ADC 58, determinou, em juízo monocrático, “para a garantia do princípio da segurança jurídica”, a suspensão de “todos os processos que envolvam a aplicação dos dispositivos legais objeto das ações declaratórias de constitucionalidade nº 58 e 59”. De todos os processos, portanto.

Todos os processos trabalhistas que entram na fase de execução precisarão, necessariamente, definir o critério para a correção dos créditos nele reconhecidos como devidos.

​Esses créditos têm natureza alimentar (art. 100 da Constituição) e estão inseridos em uma realidade na qual, por conta dos riscos de ajuizamento de uma demanda trabalhista, a maioria absoluta da(o)s reclamantes são ex-empregada(o)s, muitos da(o)s quais estão no rol das quase 13 milhões de pessoas desempregadas. E isso em plena pandemia, em meio a uma crise estrutural, econômica e sanitária aguda.

A ação declaratória foi proposta pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF. Há um tanto de trágico e de cômico nisso. As instituições financeiras, cujos critérios de correção monetária e juros são bem diversos, não querem que os créditos trabalhistas sejam atualizados. E o STF, pelo menos em decisão monocrática, concorda com isso.

No site Calculadora do Cidadão, do Banco Central do Brasil, é possível verificar que a TR está estagnada desde setembro de 2017[1]. Uma dívida de R$ 1.000,00 corrigida por esse critério, para o período de 01/9/2017 até 27/6/2020, resultará nos mesmos R$ 1.000,00. Há, pois, um dado concreto da realidade: a TR não corrige.

No mesmo site[2], é possível observar que se uma trabalhadora ou um trabalhador precisar parcelar o cartão de crédito, a taxa mensal que lhe será cobrada, caso seja cliente do BRADESCO S.A., será de 6,13% e a anual de 104,16%; se for cliente do AGIBANK S.A. as taxas serão de 12,23% e 299,17%. Se a dívida for no cheque especial, os juros praticados pelo BRADESCO S.A. serão de 7,88% ao mês e 148,40% ao ano; pelo SANTANDER (BRASIL) S.A. 7,94% ao mês e 150,24% ao ano e pelo AGIBANK S.A, 8,27% ao mês e 159,60% ao ano[3].

As instituições financeiras escolhem os juros que irão cobrar e usam critérios de correção monetária diversos daquele que pretendem seja observado na Justiça do Trabalho.

E são vários os critérios que podem ser utilizados. O INCC (Índice Nacional da Construção Civil), o CUB (Custo Unitário Básico), IGP-M (Índice Geral de Preços Mercado), INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), o IPCA (Índice de Preços para o Consumidor Amplo) e IPCA-E (Índice de Preços ao Consumidor Amplo-Especial).

O IPCA-E é computado mensalmente pelo IBGE, a partir da identificação da variação dos preços no comércio. Criado em 30 de dezembro de 1991, é obtido através da apuração das variações dos custos com os gastos das pessoas que ganham de um a quarenta salários mínimos nas regiões metropolitanas de Belém, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e município de Goiânia.

O período de coleta, tanto do INPC quanto do IPCA, estende-se, em geral, do dia 01 a 30 do mês de referência. O IPCA-E considera, para sua composição de cálculo, os seguintes setores: alimentação e bebidas, habitação, artigos de residência, vestuário, transportes, saúde e cuidados pessoais, despesas pessoais, educação e comunicação. Utiliza a média trimestral dos percentuais apurados. E partir desses critérios, calcula a taxa que implica reposição da perda da capacidade de consumo no período.

Essa é a função da correção monetária. Garantir a manutenção do poder de compra do credor. A TR – Taxa Referencial é na realidade um critério de juros. O artigo 39 da Lei 8.177 refere textualmente “Os débitos trabalhistas de qualquer natureza, quando não satisfeitos pelo empregador nas épocas próprias assim definidas em lei, acordo ou convenção coletiva, sentença normativa ou cláusula contratual sofrerão juros de mora equivalentes à TRD acumulada no período compreendido entre a data de vencimento da obrigação e o seu efetivo pagamento”.

Enquanto correção monetária é reposição de perda, juro é a remuneração cobrada pelo pagamento tardio de um crédito ou por determinado empréstimo.

A TR não apenas é uma modalidade de cálculo de juro, como também não repõe nada. Portanto, o que se pretende, ao insistir na utilização da TR como critério de correção monetária na Justiça do Trabalho é que aqui, ao contrário do que acontece em todas as demais relações, haja correção nenhuma! O resultado é a perda concreta do valor de consumo do crédito que foi ilicitamente subtraído da parte autora e que deve ser devolvido em razão de decisão judicial. O que era possível comprar com R$ 1.000,00 em 2017, já não se compra hoje.

A utilização da TR, além de implicar a completa ausência de atualização, inviabilizando a reparação efetiva do dano, ainda faz do descumprimento de direitos fundamentais trabalhistas um ótimo negócio. Um negócio, porém, de elevado custo social, porque implica concretamente a redução do poder de consumo e o incentivo ao descumprimento contumaz da ordem jurídica. Além disso, acaba por compelir a(o) trabalhador(a) ao endividamento.

O consumo das famílias que vivem do trabalho constitui parte importante do PIB. Como tenho dito insistentemente, reduzir salário ou, nesse caso, retirar capacidade de consumo, é retirar dinheiro de circulação, algo que afetará também a quem produz bens e serviços em nosso país. Além disso, quem teve sonegados seus salários precisará, necessariamente, continuar a alimentar a família, vesti-la, pagar moradia, etc. Para satisfazer os débitos daí decorrentes, tantas vezes obriga-se a contrair empréstimo bancário. Nesses contratos, as taxas aplicáveis serão diversas, seja em relação à correção monetária, seja quanto aos juros. Não é difícil imaginar o resultado de uma situação como essa: quem trabalhou e não recebeu será compelido a contrair dívida bancária, sujeitando-se a taxas exorbitantes, mas receberá seu crédito alimentar, após um longo procedimento judicial, em valores históricos.

A pergunta devemos formular, uma vez mais, é a quem interessa o aprofundamento da desigualdade entre quem vive do trabalho e quem vive da exploração financeira do dinheiro alheio.

É importante lembrar aqui que, de acordo com o Justiça em Números do CNJ, as matérias mais recorrentes na Justiça do Trabalho referem-se ao não pagamento de verbas resilitórias. Verbas necessárias para a sobrevivência física, devidas a pessoas que, em regra, enquanto litigam em juízo, permanecem desempregadas. Paralisar a Justiça do Trabalho implica, portanto, negar a reposição desse dano que pode concretamente significar o comprometimento da vida da(o) trabalhador(a) e de seus familiares, além de afetar diretamente a arrecadação e distribuição de renda por ela promovida todos os anos.

Em 2018, a Justiça do Trabalho recolheu aos cofres públicos da União R$ 3.608.526.503,37 de janeiro a dezembro. Em 2019, esse valor chegou a R$ 4.047.308.068,54. Apenas de contribuições previdenciárias, a Justiça do Trabalho arrecadou em 2018 R$ 2.768.230.481,67. O total pago em razão das decisões trabalhistas foi de R$ 29.374.970.881,24.

A briga pelo esvaziamento do crédito trabalhista, cujo resultado concreto, como se pode ver, será desastroso, é antiga.

Até agosto de 2015, o TST considerava válida a redação do art. 39 da Lei nº 8.177/91 (OJ nº 300 da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais), mesmo que esse dispositivo jamais tenha tratado de correção, mas sim de taxa de juros. Foi exatamente após sucessivos julgados do STF sobre a matéria do índice de atualização monetária aplicável a débitos judiciais  (ADIs nºs 4.357, 4.372, 4.400 e 4.425, em que foi Relator originário o Exmo. Ministro Carlos Ayres Britto e Redator para o acórdão o Exmo. Ministro Luiz Fux), que o TST reverteu seu posicionamento, reconhecendo que a TR (TRD ou índice oficial da poupança) efetivamente não representa mais um índice capaz de projetar a depreciação da moeda ao longo do tempo. Ele refere expressamente em sua decisão que “a atualização monetária dos créditos é direito do credor e deve refletir a exata recomposição do poder aquisitivo decorrente da inflação do período, sob pena de violar o direito fundamental de propriedade, a coisa julgada e o postulado da proporcionalidade, além da eficácia e efetividade do título judicial e a vedação ao enriquecimento ilícito do devedor.”

Em razão disso, em 04 de agosto de 2015, o TST (ArgInc – 479-60.2011.5.04.021) decidiu pela inconstitucionalidade por arrastamento da expressão “equivalente a TRD” contida no caput do artigo 39 da Lei nº 8.177/1991, em controle difuso da constitucionalidade nos autos do processo nº TST – ArgInc – 479-60.2011.5.04.0231.

No dia 20/9/2017, o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário 870947, seguindo o voto do relator, ministro Luiz Fux, aprovou duas teses sobre a matéria. A segunda delas é de que: “O artigo 1º-F da Lei 9.494/1997, com a redação dada pela Lei 11.960/2009, na parte em que disciplina a atualização monetária das condenações impostas à Fazenda Pública segundo a remuneração oficial da caderneta de poupança, revela-se inconstitucional ao impor restrição desproporcional ao direito de propriedade (CRFB, art. 5º, XXII), uma vez que não se qualifica como medida adequada a capturar a variação de preços da economia, sendo inidônea a promover os fins a que se destina.”

É preciso ter claro o fato de que a atualização monetária não constitui vantagem financeira, mas sim mera reposição de perdas já experimentadas pela(o) credor(a), cujo objetivo é tão somente viabilizar a reparação efetiva de dano já causado, preservando assim o direito à vida e mesmo o direito liberal de propriedade.

Na hipótese de crédito alimentar, como é o caso do trabalhista, a situação é ainda mais grave do que em relação a outros créditos, seja porque a reparação jamais será integral, pois tempo de vida não se restitui com pecúnia, seja porque os alimentos se destinam – como regra – à manutenção da subsistência física de quem trabalha.

A decisão proferida pelo Ministro Gilmar Mendes no último dia 27 parte do argumento de que no “atual cenário de pandemia”, a Justiça do Trabalho “terá papel fundamental no enfrentamento das consequências da crise econômica e social, com a estimulação de soluções consensuais e decisões judiciais durante o período em que perdurarem as consequências socioeconômicas da moléstia”.

Como a Justiça do Trabalho fará isso se sequer poderá atuar?

Ainda que a intenção fosse fazer da Justiça do Trabalho um órgão destinado apenas à conciliação, o que já comprometeria sua razão histórica de existência, restaria ainda o fato de que se os acordos forem descumpridos, novamente a paralisia imposta por essa decisão impediria a cobrança do débito.

A Justiça do Trabalho foi, portanto, colocada em uma encruzilhada.

E precisa reagir. Da perspectiva jurídica pelo menos três alternativas surgem.

Uma delas é o cumprimento literal da ordem, com a paralisação de todas as execuções trabalhistas, pois todas elas, sem exceção, envolvem – por óbvio – definição quanto aos critérios de correção monetária. Isso implicará a total inércia da Justiça do Trabalho, justamente em um momento de pandemia e crise aguda.

Implicará também descumprir, sujeitando-se a reclamações constitucionais, as decisões proferidas pelo pleno do STF nas ADI´s nºs 4.357, 4.372, 4.400 e 4.425, e bem assim a tese jurídica já assentada a partir da decisão proferida no RE 870947. Sofrerão (ainda mais) o(a)s exequentes (trabalhadoras e trabalhadores), mas também a sociedade. A Justiça do Trabalho será extinta por inação.

Outra alternativa é suspender apenas a discussão sobre o critério de cálculo, o que significaria – para as instituições financeiras – o atingimento de sua pretensão de eliminar a atualização efetiva dos créditos trabalhistas. Significaria claro estímulo ao descumprimento de direitos fundamentais. Significaria, por fim, admitir uma disparidade absurda entre os critérios utilizados pelas instituições financeiras, quando executam contratos na qualidade de credoras, e aqueles contra elas adotados, quando reconhecidamente devedoras de crédito alimentar. A Justiça do Trabalho perecerá, porque perderá sua razão de ser. Ajuizar uma demanda reclamando contra a ilícita retenção de salário será ineficaz e já não haverá mais sentido para que essa estrutura do Poder Judiciário se mantenha.

Há, ainda, uma terceira alternativa.

Honrar as decisões do pleno do STF, que já reconhecem que a TR, além de não ser índice de correção monetária, nada corrige pelo menos desde 2017, e seguir aplicando o índice IPCA-E. Mas aí, novamente o argumento do descumprimento de uma ordem explícita poderá ser invocado.

Todas as alternativas, portanto, colocam a Justiça do Trabalho em uma encruzilhada. A resposta a ser dada irá determinar as possibilidades de futuro para essa instituição. A paralisia que se pretende impor à Justiça do Trabalho não terá ganhadores, que não aqueles estritamente ligados ao capital financeiro, que terão reduzidos seus débitos trabalhistas e potencializadas as suas oportunidades de exploração da classe trabalhadora, por meio do endividamento.

A solução, em vista da ordem constitucional vigente, da centralidade dos direitos trabalhistas e da necessidade de agir com “desprendimento, altivez e coragem”, a fim de evitar “desaguarmos em quadro de convulsão social”, é a colocação da matéria em pauta pelo pleno do STF, antes do recesso que se avizinha, e o julgamento definitivo da matéria.

Não estamos diante de uma questão de compreensão jurídica acerca de matéria controvertida, pois o artigo 39 da Lei 8.177 não trata de correção monetária. Além disso, está zerado desde setembro de 2017 e não é praticado sequer pelas instituições financeiras que pretendem sua aplicação em relação aos débitos trabalhistas. A paralisia das execuções trabalhistas será a chancela do desrespeito e do menosprezo por direitos que estão na centralidade da ordem jurídica.

​Por trás dessa insistência em não permitir que créditos trabalhistas sejam atualizados, está uma deliberada intenção de extinguir a Justiça do Trabalho e o Direito do Trabalho. A questão é saber se 2020, em meio ao flagelo da pandemia, entrará para a história também como o ano em que a Justiça do Trabalho foi colocada de joelhos e, por fim, capitulou. Ou se reagiremos, construindo a única racionalidade compatível com a história e a finalidade da Justiça do Trabalho e do Direito do Trabalho: a racionalidade de reparação integral dos danos causados a quem trabalha, a fim de que a prática de atos ilícitos de descumprimento de direitos fundamentais deixe, finalmente, de ser um “bom negócio”.

Porto Alegre, 29 de junho de 2020.

Fonte: Jorge Luiz Souto Maior